Machado no papel e Machado no tablet não são o mesmo Machado. O
de tinta se imprime na lembrança; o de pixel passa ao largo da memória e, entre
a publicidade, as abas e os links, some como fantasma entre fantasmas.
Não que ler nas telas eletrônicas
seja sempre uma tragédia. É que cresce a turma de cientistas avisando que o
cérebro prefere guardar texto folheado, tocado, cheirado. A tela que imita
papel e tinta, vantagem de leitores de e-books como o Kindle, já evoluiu a
ponto de ombrear o material impresso em testes de velocidade e precisão de
leitura, mas ainda come poeira nos quesitos compreensão e memória.
Em 2002, pesquisadores das
universidades britânicas de Plymouth e Bristol sugeriam que lembramos melhor
daquilo que lemos em papel. Dois anos depois, psicólogos das universidades
suecas de Karlstad e Gothenburg emendaram: monitores eletrônicos são lanternas
de estresse, e rolar páginas virtuais distrai mais do que virar páginas reais.
Ainda em 2004, um estudo da universidade francesa de Bretagne-Sud apontava que
o e-book “dificulta a recordação de informação assimilada”, enquanto o papel
“tende a facilitá-la”. Haveria uma “relação crítica” entre o manejo do objeto e
o processamento mental do texto.
Essas observações foram decerto
antecipadas pela sabedoria popular, sendo pouca a gente que, em literatura,
favorece o computador. O problema é que, como o cérebro se molda às tarefas que
mais executa, a nossa capacidade de sacar passagens longas e complexas pode
estar sofrendo com o alto consumo de “leitura fastfood” nos badulaques
digitais.
A neurocientista e escritora
britânica Susan Greenfield cunhou o termo “mudanças mentais”, segundo ela tão
importante quanto o correlato climático, para descrever a transformação do
cérebro treinado para a internet. Essas mudanças, no que afetam a nossa relação
com a palavra, vêm sendo rastreadas por pesquisadores como Maryanne Wolf,
professora da universidade americana de Tufts e autora de Proust e a Lula:
História e Ciência do Cérebro Leitor.
Em seu trabalho “arqueoneurológico”,
Wolf diz que não há gene ou parte do cérebro que se devotem especificamente ao
ato de ler. Em vez disso, a atividade teria sido lapidada aos poucos na
estrutura do órgão, em um processo de aprendizagem que, rascunhado nas argilas
dos sumérios e nas paredes dos egípcios, estaria agora garranchado pela
internet. Não sem alguma ironia, o livro de Wolf achou sucesso, e departamentos
de Inglês passaram a procurá-la, apavorados com a dificuldade de alunos em
compreender obras clássicas.
Tanto Wolf quanto Nicholas Carr,
autor do best-seller Geração Superficial, consideram que os debates atuais
ratificam a filosofia de Marshall McLuhan, famoso por declamar, ainda nos anos
1960, que “o meio é a mensagem”. A própria tecnologia, versa McLuhan, é
portadora de ideologia, e Carr argumenta que na internet passeia uma ética
industrial: rápida, eficiente, otimizadora da produção e do consumo, adversária
da contemplação.
– Os fornecedores de conteúdo sabem
disso e produzem de acordo. Acrescente a isso a entrega de material digital em
uma plataforma multitarefas sempre em atualização, e o resultado é uma série de
ações breves de reação a mensagens e textos curtos que quebram a progressão
normal da leitura em profundidade – afirma Andrew Dillon, da Universidade do
Texas.
Separando 72 estudantes do primário
em dois grupos, Anne Mangen, da universidade norueguesa de Stavanger, pôde
observar que narrativas lineares ganhavam leituras mais pobres quando
digitalizadas em PDF. Entre as possíveis causas estaria a “fisicalidade” do
papel, contra a excitação meramente visual dos monitores.
Mangen diz que é cedo para
restringir as diferenças a aspectos táteis, já que a experiência com a palavra
depende também de “subdimensões” como a diagramação da página, o tipo de texto,
o propósito e o local de leitura. Ainda assim, ao entrevistar leitores, ela
ouviu muito aplauso ao manuseio do objeto, como o “prazer de ter um livro
em mãos” e a “possibilidade de fazer anotações na margem”.
– Além disso, já está relativamente
aceito que não somos muito bons em executar várias tarefas ao mesmo tempo. Isso
vem a um custo não apenas cognitivo, como a perda da habilidade de manter o
foco por longos períodos, mas também em diversos outros níveis – afirma a
professora, mencionando a preocupação da comunidade científica com a formação
de crianças mais acostumadas a telas virtuais do que ao toque físico.
NOVOS
CAMINHOS
Depois de conduzir estudo sobre a
aprendizagem com audiobooks, a professora Vera Wannmacher Pereira, da Faculdade
de Letras da PUCRS, agora fará parte de um grupo que vai comparar o
processamento cognitivo de textos eletrônicos em relação aos impressos. A
pesquisadora ressalta que o processamento da leitura se modifica não apenas em
função do suporte, dependendo ainda do objetivo do leitor, do seu conhecimento
prévio e do tipo de texto. No caso da palavra falada, por exemplo, o “leitor”
adota artimanhas diferentes.
– Mesmo com o livro virtual, é
possível rolar a barra, pular, ir adiante e voltar. O audiobook é muito mais
sutil. O leitor sabe que não haverá repetição, então dá preferência a uma
estratégia de compreensão detalhada. Como o processamento é diferente, e como a
leitura é mais minuciosa, observamos resultados melhores de compreensão e de
aprendizagem no audiobook – diz Vera.
A professora afasta a tese de que os
jovens hoje se desarranjam diante de obras clássicas, apontando que “a
socialização do conhecimento é complexa, demorada e mexe com convicções”.
– Hoje temos um mundo do movimento,
da cor. Isso modifica tudo, e não significa que algo vá tombar. O que vai
ocorrer, provavelmente, é uma acomodação de todos os suportes. O e-mail trouxe
uma transformação social muito grande, e não adianta se apavorar porque antes
se escrevia uma carta com zelo e, hoje, a mensagem vem abreviada e rápida.
Temos que saber nos ajustar, construir novos caminhos para este mundo, e não para
o mundo que já foi – sustenta.
Vera também alerta que o maior
acesso à educação apresenta desafios para a avaliação da aprendizagem:
– Poucos iam à escola na minha
geração, e é claro que esse grupo, tão selecionado em testes para entrar no
primeiro ano, no ginásio, no Ensino Médio, acabaria lendo e escrevendo bem.
Hoje temos quase todas as crianças nas escolas, com condições, buscas,
situações econômicas muito diferentes. Vivemos no mundo da heterogeneidade.
Antes, os processos seletivos davam uma aparência de homogeneidade – completa.
A REDE
NÃO É RASA
Decano da Escola de Informação da
Universidade do Texas, Andrew Dillon repara que os avanços tecnológicos
disparam muitos outros alertas vermelhos, para além da nossa relação com a
palavra escrita. Grita-se, por exemplo, que os serviços de nuvem e busca vão
detonar a memória humana como se fosse aplicativo dispensável para a espécie.
Dillon concorda que devemos segurar firme a habilidade de apreciar os
benefícios de textos longos, mas diz que não vale gastar muito tempo pensando
em um “iminente colapso da cultura”:
– Olha, a tecnologia vai sempre nos arruinar, então por que a
web seria diferente?
Porque, para trincheira mais otimista, a internet foge do dilema do copo meio cheio ou meio vazio. A manobra é surfar na onda braba da rede e desaguar, vez que outra, em água parada.
Porque, para trincheira mais otimista, a internet foge do dilema do copo meio cheio ou meio vazio. A manobra é surfar na onda braba da rede e desaguar, vez que outra, em água parada.
– O autor de Geração Superficial diz
que não pensamos mais. Mas eu não preciso mais lembrar do teu telefone, uso a
cabeça para outras coisas. Isso passa pelo estímulo ao aprendizado. A gurizada
chega à sala de aula muito estimulada pela internet, a TV, o rádio. É questão
de ajustar o foco, conseguir provocar o aluno a entrar no ritmo de um livro.
Conseguir equilibrar é uma parte do problema – afirma André Pase, da Faculdade
de Comunicação Social (Famecos) da PUCRS.
O professor lembra que tivemos de
aprender a lidar com o surgimento das redes sociais e, mais recentemente, do
Twitter, ferramentas que apresentaram um jeito novo de tratar a informação.
– Quando falamos em “o meio é a
mensagem”, precisamos saber, no caso da internet, que falamos de um meio
superadaptável, com muitas lógicas e formas de comunicação. A natureza da
internet está em constante mutação, e isso bagunça um pouco a nossa percepção –
afirma Pase.
O pesquisador avalia que as telas
eletrônicas tendem a escantear o papel à condição de ingrediente de
encadernações especiais, com forte apelo gráfico, defendendo que a herança de
lentidão da era Gutenberg não precisa vir abaixo com a predominância dos
monitores.
– Vivemos em um tempo muito
fracionado. Hoje se joga Angry Birds na sala de espera do consultório médico,
mas antes havia revistas, já estávamos bombardeados de informação. O que
acontece agora é que começamos a trazer isso para a rotina, e passa a ser
necessário refletir sobre o que lemos. Chega um momento em que o usuário das
redes sociais já nem acompanha o que faz, então é preciso dar uma freada, fazer
o exercício de buscar outros materiais – pondera.
Colega de Pase na Famecos, o
professor Eduardo Pellanda também vai na contramão do alarmismo, enxergando no
acesso a um espectro maior e mais diverso de informação o potencial de
aperfeiçoar o conhecimento.
– Olhando somente a leitura
fragmentada, aparentemente dá a impressão de que estamos nos aprofundando
menos. Mas a minha questão é entender o que fazíamos com este tempo antes? Me
parece que não consumíamos informação. É preciso aprofundar mais para saber se
estamos fragmentados ou presenciando uma nova forma de cognição – afirma Pellanda.
À apropriação de McLuhan que veste
traje apocalíptico na internet, Pellanda opõe que “não podemos pensar de
maneira determinista sobre o meio”.
– Não se pode levar ao pé da letra a
frase do McLuhan. O meio influencia a mensagem, que entra em um ambiente de
novas apropriações. O contexto de um vídeo no YouTube é diferente deste mesmo
vídeo na TV. A internet não tem uma mensagem. Ela é múltipla, é um ambiente.
Ela é e não é meio de comunicação. A rede assume mais a forma da mensagem e do
sistema de comunicação, diferente dos meios originais nos quais McLuhan se
espelhou para cunhar a frase – diz o professor.
Porque insistimos em “pensar o papel
na tela”, Pellanda avalia que os monitores ainda não desdobraram as melhores
interfaces para receber o texto “vivo e mutável” do ambiente eletrônico. Mas a
letra pixelada, ele avisa, veio para tomar conta.
– O papel tem a tangibilidade e a
cultura milenar por trás dele. Não podemos ignorar que isso é um valor
simbólico importante. Mas, do ponto de vista técnico, não há mais por que um
texto estar no papel. Salvo pela expressão artística, não há como pensar em
todo o ciclo industrial que significa a impressão nos dias de hoje – conclui.
ESTUDOS
RECENTES
- University of North Colorado e University of Madison,
2009: na hora de estudar, preferir o papel ao e-book se mantém
constante entre os alunos, a despeito de diferenças de gênero e de hábito de
usar computadores.
- Andrews University, 2012: entre mais de 500
estudantes, apenas 4% opta por versões eletrônicas das bibliografias de seus
cursos.
- Southwest Baptist University, 2013: o e-book
só é usado quando não há uma alternativa impressa.
- University of Malaya, Malásia, 2013:
questionário sobre e-books oferecidos pela biblioteca da instituição elenca
diversos fatores que levam à aceitação do texto eletrônico, mas mostra vasta
preferência pelo papel nos casos de uso contínuo do material, mesmo entre
internautas assíduos e usuários de livros digitais
- State University of New York, 2013: a
compreensão de narrativas ou textos expositórios não é afetada pela leitura em
diferentes meios, seja o papel, o computador ou o leitor eletrônico
- California State University, 2013:
participantes de experimento preferem acessar informação no papel, mas não
apresentam diferenças de compreensão do conteúdo, quando leem no computador.
Tomar notas compensa pela queda de qualidade na leitura causada pelo acesso à
internet
- Liberty University, 2013: em estudo com 538
alunos ao longo de um semestre, uso do texto eletrônico melhora aprendizado
“afetivo” e “psicomotor”. Desempenho escolar e aprendizado cognitivo não
apresentam variação significativa.
- Instituto de Tecnologia de Israel, 2014:
estudantes de Engenharia apontam que o aprendizado na tela, além de menos
eficiente, vem acompanhado de excesso de confiança. Esse déficit pode ser
compensado com estratégias de leitura específicas.
Fonte: Zero Hora.
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