Depois
de sofrer um ataque por homens armados e mascarados na Crimeia, em março
passado, um grupo de jornalistas investigativos fez uma ligação improvável para
uma equipe de arquivistas em São Francisco, na Califórnia, a quase dez mil
quilômetros de distância dali. Após anos trabalhando para expor a corrupção na
Ucrânia, o Centro de Jornalismo Investigativo da Crimeia estava preocupado com
a possibilidade de suas reportagens desaparecerem da internet.
O
contato em questão foi feito com o Internet
Archive, uma biblioteca digital sem fins lucrativos fundada em 1996 e
dedicada a preservar o passado da internet para uso dos futuros historiadores.
Dez minutos após o telefonema, os funcionários do arquivo começaram a armazenar
as páginas da web com as reportagens criadas pelo grupo da Crimeia.
Brewster
Kahle, de 53 anos, fundador do Internet Archive, recorda a conversa telefônica
daquele dia. “Eles disseram: ‘Isso é importante demais para ser perdido’”.
Presente
perpétuo
Os
registros do Internet Archive não se concentram apenas em eventos históricos
divulgados amplamente; eles incluem até mesmo postagens de blogs domésticos.
Segundo Kahle, ao preservar a história desta forma, a internet se revela uma
“bênção”, uma oportunidade de conceder uma profundidade inédita ao estudo da
história de nossas vidas – cada vez mais presentes online. Em vez de confiar em
reportagens oficiais, cartas particulares (que podem ser facilmente destruídas)
e projetos pontuais da história narrada oralmente, os historiadores teriam
potencial para estudar a vida de pessoas comuns, ou interesses de nicho, em
tantos detalhes quanto naqueles apresentados nos relatos dos poderosos.
“A
web está bloqueada num presente perpétuo. Ali está apenas o que as pessoas
querem que você veja agora, no entanto isso não é bom o suficiente; não é assim
que se administra uma sociedade ou uma cultura aberta”, diz ele. “O melhor da
web já não está mais online”.
Direitos
e privacidade
O
potencial desse tipo de arquivamento de informação é muito grande. No entanto,
as armadilhas também são significativas. A ferramenta não só pode mudar a forma
como a história é contada, como também há questões mais amplas envolvidas: por
exemplo, de quem é o direito de guardar o passado da web? E, nestes tempos de
vazamento pós-Edward Snowden, o que a disponibilidade destes dados significa
para a privacidade individual? Por fim, qual é a melhor maneira de fazer
história a partir da internet?
O
Internet Archive é uma dentre várias instituições – as quais incluem setores da
Biblioteca Britânica e da Biblioteca de Pesquisa do Congresso dos EUA – que
tentam garantir que o conteúdo que se encontra online agora seja guardado para
o futuro. O processo se dá através da captura de mais de um bilhão de páginas
por semana, embora o Internet Archive não tente arquivar todas as páginas de
todos os sites.
Este
instantâneo da web tem sido realizado a cada dois meses desde 1996, e a porta
de entrada para os arquivos, o mecanismo de busca “Wayback Machine”, é um dos
sites mais populares da rede.
Preciosa
fonte de pesquisa
Niels
Brügger, diretor do centro de estudos de internet na Universidade de Aarhus, na
Dinamarca, recorda-se bem de sua frustração quando via seu objeto de estudo
desaparecendo diante de seus olhos devido às atualizações constantes da rede.
Agora ele usa ferramenta similar àquela apresentada pelo Internet Archive: o
arquivo nacional dinamarquês – o qual faz um instantâneo de todos os sites
registrados no domínio .dk quatro vezes ao ano. Deste modo, ele consegue
controlar a forma como a internet se desenvolve em seu país como um todo.
“É
realmente uma nova fonte surpreendente para os historiadores”, diz ele. “Isso
nos dá uma grande oportunidade para estudar a vida diária das pessoas. É como
se tivéssemos um gravador em uma feira na Idade Média”.
Ruth
Page, professora de linguística na Universidade de Leicester, no Reino Unido,
fez da Wikipedia objeto de seu trabalho. As ferramentas de congelamento da web
já auxiliaram na avaliação de como as postagens na enciclopédia online são
editadas durante o desenrolar de determinado evento.
Ruth
acredita que, no futuro, os historiadores terão de transformar seu jeito de
trabalhar. “Sou uma empírica, portanto gosto de dados. É como ser solta em uma
imensa loja de doces”, brinca ela.
De
acordo com Philip Howard, professor de políticas públicas da Universidade da
Europa Central, em Budapeste, existe mais uma consequência quando historiadores
têm acesso a uma quantidade maior de dados: as pesquisas importantes ficam mais
acessíveis. Howard usou as mídias sociais para estudar a revolta árabe; ele não
só constatou que o contato da sociedade civil com observadores externos via web
teve grande papel no auxílio dos manifestantes contra os regimes autoritários,
como também descobriu que a internet reduziu o custo de sua pesquisa.
Para
esses acadêmicos, os benefícios são claros. No entanto, também existem
preocupações, principalmente entre as empresas detentoras destes dados – e cujo
modelo de negócio principal tende a ser vendê-los a anunciantes.
Brügger
reconhece um conflito entre as empresas que enxergam os dados como uma
“mercadoria” e os historiadores, que os veem como fonte de pesquisa. “As
empresas que possuem grande parte dos dados não têm uma perspectiva de longo
prazo. Já as instituições de patrimônio cultural precisam preservá-los para a
posteridade, o que soa estranho às empresas”.
Privacidade
As
questões que envolvem a privacidade também desempenham um papel importante na
discussão. Algumas empresas têm políticas que as impedem de disponibilizar
determinadas informações.
O
Internet Archive remove material pessoal caso seja solicitado. Normalmente, os
pedidos são para conteúdo que as pessoas gostariam de esquecer, como, por
exemplo, um blog sobre um casamento fracassado.
Do
ponto de vista dos historiadores, pelo menos, há pouca atenção a esse tipo de
questão, como por exemplo se o direito à privacidade deve terminar após a morte
da pessoa documentada. A crença de Brügger é que é melhor arquivar tudo e
deixar que os estudiosos pensem nas questões éticas para cada projeto de pesquisa.
“Se não arquivarmos, em dois anos tudo estará perdido”, diz.
Para
alguns, a resposta a estes problemas reside em dar às pessoas – e a grupos de
pessoas – a capacidade de preservar o próprio material online em uma espécie de
cápsula do tempo individual.
Phil
Libin, diretor-executivo do Evernote, serviço de nuvem que organiza informações
entre vários dispositivos, pensa em manter arquivos pessoais dos usuários
depois que eles morrerem. Ele diz que o padrão seria manter tudo num status
privado, com alguma garantia de que a informação iria para o lugar desejado
pelo usuário, mesmo décadas depois de ele parar de pagar pelo serviço. “Os
dados ficariam disponíveis por mais ou menos uma centena de anos e você poderia
controlar quem teria acesso a eles e quando, podendo até ser seus filhos e
netos, dali a 50 anos”, explica.
O Instituto
Cultural do Google também disponibilizou uma ferramenta para as
pessoas criarem verdadeiras galerias de suas vidas em sites particulares. Amit
Sood, diretor do instituto, diz que o Google não quer ser um “curador digital”,
mas sim permitir que todos, desde museus e galerias de arte até indivíduos,
façam esse trabalho de curadoria por conta própria.
No
entanto, algumas empresas ainda convidam ao equilíbrio. A Long Now Foundation, uma organização fundada em
1996 para promover o pensamento de longo prazo, quer criar um espaço para
incentivar as pessoas a parar e pensar sobre como as decisões que tomarem agora
serão capazes de afetar os próximos dez mil anos. E isso inclui o conteúdo que
cai na rede.
Fonte: Observatório da imprensa.
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