Você já leu ou assistiu o filme da obra “A menina que roubava livros”? A
emocionante história de Markus Zusak,
que comoveu milhões de pessoas pelo mundo, é diferente desta, de homens que
roubam livros, mas por motivos que, de nobres, não têm nada.
Acervos de livros raros nem sempre recebem do
Estado a atenção devida, mas são mina de ouro para quem entende do assunto. A combinação
desses fatores, descaso e valor, leva a crimes milionários. Exemplo notório
disso ocorreu em 2012, quando o italiano Marino Massimo de Caro foi preso por
furtar mais de mil livros da Biblioteca Girolamini, instituição napolitana da
qual tinha sido nomeado diretor meses antes.
No Brasil, bibliotecários e investigadores
afirmam que furtos e roubos de livros raros se multiplicaram em dez anos,
embora não seja possível mensurá-los – sobretudo devido ao silêncio de vítimas,
que não raro só descobrem os crimes quando as obras reaparecem. Mais de dez
grandes casos foram noticiados no país desde 2003. Em vários, há um denominador
comum, segundo os investigadores: um ex-estudante de biblioteconomia acusado de
comandar uma quadrilha em todo o país (veja alguns casos abaixo).
Esse cenário que tem como predadores amantes
dos livros, gente que em teoria gostaria de preservá-los, inspirou a americana
Allison Hoover Bartlett a escrever O Homem que Amava Muito os Livros,
lançado pela Seoman no último semestre. O livro acompanha, ao longo da última
década, a história do ladrão John Charles Gilkey e do “bibliodetetive” Ken
Sanders. “Em séculos de furtos do gênero, os grandes criminosos foram clérigos
ou bibliotecários, gente apaixonada por livros. Uns fazem isso por dinheiro;
outros, pela impressão de que os colegas não lhes dão o devido valor”, diz a
jornalista à Folha.
Gilkey tem como alvo vendedores de livros
raros e como método o uso de números de cartões de crédito alheios. Foi preso e
solto mais de uma vez, e sempre se beneficiou do sigilo que os colecionadores,
constrangidos pelos furtos, mantêm sobre os casos.
Ápice
“O ano de 2003 não é apenas um ápice [no roubo
de obras raras no Brasil]. Há ali uma alteração de perfil”, escreveu a
pesquisadora Beatriz Kushnir, diretora do Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro, em artigo de 2009.
Referindo-se à descoberta, pela Polícia
Federal, do furto de 2.000 itens do Itamaraty, no Rio, em 2003, ela diz que o
caso “aponta para um novo alvo: papéis históricos, mais fáceis de transportar”.
“Até chegar a livros e documentos, há uma evolução. No roubo de arte sacra, é
mais fácil mapear a origem. Livros e documentos são suportes com mais de uma
cópia, o que facilita a desova da mercadoria”, afirma Kushnir àFolha.
Ela fez pós-doutorado no tema depois que, em 2006, descobriu um furto de mais
de 3.000 itens do Arquivo Geral.
Parte do acervo levado, como 87 gravuras de
Jean-Baptiste Debret (1768-1848), reapareceu em 2007, quando foi preso pela
segunda vez o homem que delegados da PF definem como o maior criminoso do
gênero no país hoje.
Banca de livros
Laéssio Rodrigues de Oliveira, 41, estudou
biblioteconomia na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo e, no
início dos anos 2000, teve uma banca de livros usados perto da Biblioteca Mário
de Andrade. Foi detido pela primeira vez em 2004, após denúncia de um vendedor
que comprara dele, por R$ 2.000, De Medicina Brasiliensi (1648),
de Willem Piso. O livro, avaliado em até R$ 70 mil, pertencia ao Museu
Nacional.
Quando a polícia localizou Laéssio, achou com
ele itens de instituições como o Arquivo Histórico de Blumenau e a Mário de
Andrade. Meses depois, estava em liberdade. “Creio que 90% dos casos de furto
do gênero no Brasil têm a ver com Laéssio e a quadrilha dele. Comete de furtos,
passando-se por pesquisador, a assaltos”, diz o delegado da Polícia Federal
Fabio Scliar, que afirma ter interceptado cartas dele, de dentro da prisão, a
comparsas de vários Estados.
Também delegado da PF, Alexandre Saraiva,
responsável pela investigação que resultou na segunda prisão de Laéssio em
2007, destaca o conhecimento demonstrado por ele – tanto sobre obras quanto
sobre o funcionamento de instituições –, o que o leva a crer que haja ajuda de
funcionários nos crimes.
Dessa prisão, por tentativa de assalto à Casa
de Rui Barbosa (em 2008, ainda detido, ele foi condenado por furto no Instituto
de Pesquisas do Jardim Botânico), Laéssio foi libertado no final de 2012. Meses
depois, Beatriz Kushnir recebeu cinco pacotes, com o nome do escritor João do
Rio (1881-1921) como remetente, com alguns dos livros furtados em 2006 no
Arquivo Geral. “Minha hipótese é que há um depósito onde ele guarda o que não
conseguiu comercializar. Espero que seja possível localizar esse depósito. Lá
estará o acervo de várias instituições”, diz. Saraiva diz que é preciso que as
instituições reforcem sua segurança. E ressalta a necessidade de se investigar
os receptadores – em geral “pessoas de classe altíssima”. “Esse tipo de crime
acontece sob encomenda.” Muitas vezes, o material sai do país.
Laéssio responde hoje a mais de dez
inquéritos. Após quase um ano em liberdade, foi detido novamente no fim de
2013, acusado de ser o mentor de um assalto à mão armada ao Centro de Ciências,
Letras e Artes (CCLA) de Campinas. Está hoje no Centro de Detenção Provisória de Hortolândia.
***
“É praxe acusar Laéssio de todo e qualquer
roubo”
Procurado pela Folha, Laéssio
Rodrigues de Oliveira respondeu, via Coordenadoria de Unidades Prisionais da
Região Central do Estado de SP, “não [ter] interesse em conceder qualquer tipo
de entrevista a esse jornal referente aos motivos de sua prisão ou qualquer
outro fato”. Ele está preso desde 18 de novembro no Centro de Detenção
Provisória de Hortolândia, acusado de organizar um assalto à mão armada contra
o Centro de Ciências, Letras e Artes de Campinas.
Até outubro, o acusado era representado pelo
advogado José Clevenon Alves Bezerra, que disse à Folha, por carta,
ter se afastado do caso após a Polícia Civil de Campinas indiciá-lo,
“indiretamente, como associado criminosamente a Laéssio”. Sobre o ex-cliente,
diz que “já é praxe das polícias (Civil e Federal) acusarem Laéssio de todo e
qualquer roubo ou furto de obras de arte e livros raros”.
“Após um roubo contra o Instituto de Botânica
da USP [em 2012], Laéssio foi acusado de mentor intelectual, mesmo estando
preso em Bangu em regime fechado, e diversos meios de comunicação, inclusive a Folha,
publicaram matérias acusando-o, sem qualquer prova, de comandar crimes de
dentro da cadeia.”
Fonte: Observatório da Imprensa.
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